terça-feira, 14 de setembro de 2010

Helo, stranger...

Esta é Ana. Todos os dias ela trabalha na terceira livraria mais bonita do mundo. Todos os dias ela passa horas limpando cada estante, cada cantinho com tal zelo e encanto, como se fizesse todos os dias pela primeira vez. Mas, talvez, pelos tantos anos acumulados, isso seja difícil de perceber. Talvez as rugas e marcas, as costas arqueadas, pés e mãos cansados camuflem a verdade. A história de Ana poderia ser uma história comum, porém, como ter uma história comum trabalhando na terceira livraria mais bonita do mundo? Se trabalhasse numa livraria qualquer, quem sabe...
Diz-se que chega a ser uma afronta escrever esta história aqui, visto que, mesmo trabalhando na terceira livraria mais bonita do mundo, Ana nunca aprendeu a ler. Portanto, não poderia lê-la. Não que não quisesse, nem que não tenha tido oportunidade, só não achou necessário. Achava que era um esforço desnecessário. Pois, para ela, o encanto das histórias está na transformação que sofrem ao passar de uma boca para outra. Na sua, diz ela, dinâmica, é isso mesmo, dinâmica. Ana gosta dessa palavra. Para ela tudo deve ser dinâmico, ter movimento. Afinal, parados não saímos do lugar. E com os livros, as palavras, é a mesma coisa... Quando você coloca as palavras num papel está engessando-as. Ou, nas palavras de Ana, deixando-as estáticas, Ana também gosta dessa palavra. Quem sabe até mesmo matando-as. E quem quer isso? Quem quer matar uma linda história de amor? Não é. Uma história num livro, diz Ana, está perdida e seus personagens fadados a ter sempre o mesmo destino. Diferente de quando estão a passar de uma boca para a outra. Pois ai ganham novos fatos, novas cores. Perguntam-a se assim as histórias não ficam a transformar-se demais, perdendo-se até. Ela se ofende com tal calúnia, dizendo que a alma da história sempre permanece. O que acontece é que ela ganha um frescor novo.
Deves estar se perguntando porque é que Ana deu-se a trabalhar num lugar tão sem sentido, pelo menos para ela, como a terceira livraria mais bonita do mundo. Pois bem. Aconteceu mais ou menos assim. Digo mais ou menos para não, como é mesmo? Ah sim, para não fazer da história estática, deixando por conta de cada um imaginar os detalhes de tal caminhada.
Ana nasceu numa cidadezinha, quase uma vila. Seu pai era dono da venda local e, desde cedo, colocou Ana e seus irmãos para trabalharem junto dele. Mas logo surgiram os problemas, pois Ana passava o dia a inventar histórias e contá-las para os fregueses. Só que as histórias de Ana não eram histórias quaisquer. Não. Aos poucos descobriu-se que ela baseava todas na vida dos moradores locais, em segredos que esses teimavam em acreditar que eram segredos. Entretanto que, na verdade, como qualquer segredo andavam pelos cantos escuros, pelas conversas rápidas de esquina, pelas mesas e garrafas vazias. Até irem parar nas inocentes histórias da doce Ana.
Podem imaginar a confusão quando revelou-se esses não mais segredos. E também está claro que, como em qualquer história, a culpada por todo forfé foi a contadora de histórias, ou melhor, contadora de segredos, então com seus 13 anos.
Sem pestanejar, os zelosos pais escorraçaram-na de casa. Mandando-a para a cidade grande mais próxima, aos cuidados de uma parente distante que necessitava de alguém a faxinar sua pequena pensão, em troca de uma cama e um pouco de comida. E lá se foi Ana.
Acredito que não seja surpresa para ninguém que, poucos anos depois, tudo tenha se sucedido como da primeira vez. Afinal, Ana era uma contadora de segredos nata. E que, dessa vez lá foi Ana, batendo de porta em porta à procura de emprego, asilo e comida.
E os encontrou. À porta de uma gentil família chamada Lello. Que ofereceu-a um trabalho de faxineira na sua humilde livraria. Deixariam-na dormir em um quartinho dos fundos e lhe pagariam um ordenado pelo seu trabalho a limpar as estantes, chão, mesas e tudo mais.
Ana, até entrar pela primeira vez no seu novo local de trabalho, não sabia o que era uma livraria. E, imaginem, se puderem, quão grande foi seu espanto ao perceber que se tratava de um cemitério de histórias. Pensou ela naquele momento ser o lugar perfeito. Pois, existiria melhor lugar para uma contadora de segredos que não mais podia contá-los, que um cemitério de palavras. Sabia ela então, que ali, todas as histórias e seus segredos que se formavam diariamente na sua perdida imaginação, seriam já enterradas, e seguramente guardados. Não mais causando transtornos aos seus donos. Diante disso, ela sorriu. Pois, quase que instantâneamente uma outra ideia nasceu na sua mente, e essa era a mais dinâmica de todas as ideias.
Ali, ao olhar o sol nascer e passar por entra as vidraças, iluminando todos aqueles livros, Ana teve uma certeza. A certeza de que havia um céu, isso mesmo, um céu de histórias. Um céu para onde iriam todas as suas histórias natimortas. Onde elas, ao contrário das que foram enterradas nos livros e daqueles que são enterrados sob a terra sem acreditarem que existe uma nova vida após a morte, seriam enfim eternas e livres em sua essência.
E assim é, desde então, a vida de Ana. Dia após dia, enquanto os turistas que vem das mais distintas partes do mundo estão a maravilhar-se com a terceira livraria mais bonita de todo mundo, cegos ao ponto de não notar a sutil presença de Ana. Que, sem que ninguém saiba ou sequer perceba, ela está a todo momento eternizando-os. Fazendo brotar em sua mente histórias com os segredos de cada um e quase que instantâneamente enterrando-as.
Para Ana, assim como para a Raposa do Pequeno Príncipe, ainda que em âmbitoa diferentes, "o essencial é invisível aos olhos".

PS: Espero que essa história passe por muitas bocas, para que possamos eternizar os segredos de Ana assim como ela faz com tantos...

Um comentário:

  1. Saramago que se cuide. Seus textos estão lindos, dá vontade de continuar lendo. A aprendiz pasou a mestra, em todos os sentidos. Te amo.
    Escreve mais..........................

    Sinhá

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